Histórico viveiro de talentos arrisca ficar sem futebol de âmbito nacional, com Barreirense e Fabril (antiga CUF) em lugares de descida no Campeonato de Portugal. Carlos Manuel e Manuel Fernandes recordam tempos áureos que incluíram idas à Europa
O Barreiro nunca celebrou um título nacional, mas uma equipa formada pelos jogadores que os dois gigantes da cidade deram ao futebol português assustaria qualquer colosso mundial. Pela CUF (atual Fabril) passaram nomes como João Mário, Conhé, Manuel Fernandes e Carlos Manuel, que viria depois a vestir a camisola do Barreirense, que já antes vira nascer Bento, Zé Augusto e Chalana, entre outros. Atualmente os dois rivais da Margem Sul recusam ser inimigos e não afastam a ideia de uma união futura. Mas para já a prioridade dos dois clubes do Campeonato de Portugal é evitar "o triste fado do ioiô", ou seja, o sobe e desce aos distritais. E com uma garantia comum: se descerem, o caminho é para cima.
"O Barreirense luta para não descer aos distritais e enquanto for matematicamente possível vamos acreditar. E devo dizer que o calendário é favorável", atira José Paulo Rodrigues. A afirmação, em jeito de crença, do presidente do clube pretende mostrar que um dos históricos do futebol português está vivo e vai sobreviver a qualquer adversidade. É assim há mais de um século. Fundado em abril de 1911 por um grupo de aprendizes das oficinas dos Caminhos de Ferro, a agremiação Sport Recreativo Operário Barreirense passou depois a ser FC Barreirense. Hoje ainda é o 14.º clube com mais presenças no escalão máximo do futebol português (24), onde teve muitos momentos marcantes, como o 4.º lugar na época 1969-70, com Manuel Oliveira ao leme e Bento na baliza, que levariam o clube à Taça das Cidades com Feiras.
Tempos de glória esses que lhe valeram o título de o glorioso da Margem Sul, mas a alcunha atribuída por Artur Agostinho não pegou (glorioso, hoje, é o Benfica) e hoje os adversários optam por algo menos gracioso e chamam--lhes os cabeçudos.
Atualmente no Campeonato de Portugal, o terceiro escalão do futebol português, a equipa tenta evitar a descida aos distritais mais uma vez. A "primeira final" do antepenúltimo classificado da série G é hoje, frente ao 1.º Dezembro. E é com alguma tristeza que o atual presidente vê a equipa chegar "a esta altura nesta situação", fruto de alguma "má sorte" em alguns jogos e "outros por culpa própria". Mas é preciso enquadrar isso com a realidade da equipa, em que não figuram jogadores profissionais: "Uns estudam, outros trabalham. Nós só podemos treinar às 20.00 e por vezes há baixas de última hora, porque alguns trabalham por turnos..."
Com José Paulo Rodrigues na presidência, o Barreirense não irá entrar em loucuras nem hipotecar o futuro. "O clube vem de uma situação financeira complicada, depois de dar um passo maior do que a perna... perdeu património, dinheiro, perdeu infraestruturas e hoje a nossa realidade é a de recuperação do clube. Não podemos ir atrás de sonhos, porque a única coisa que isso nos deixa é um sucesso limitado e dívidas certas", defende, apontando a formação como alicerce para o futuro.
Aliás, João Cancelo é um excelente exemplo dessa política. Fez parte da formação no Barreirense antes de se mudar para a Luz e render ao clube 72 mil euros! Agora, o jovem Raimundo, guarda-redes da seleção sub-15, e alguns juvenis estão perto do apuramento para o nacional e podem ser os próximos da fornada...
Com um orçamento global de cerca de 500 mil euros, o futebol sénior faz a época com cem mil euros, um dos orçamentos mais baixos do campeonato nacional, a par do vizinho Fabril. As formas de conseguir receitas "são poucas" e resumem-se à quotização, sponsorização, comparticipação dos atletas, exploração de uma bomba de gasolina e algumas rendas que resultam de património alugado. Já a sede "tem um valor incalculável", mas "não é vendível", pois "é resultado do movimento associativo do Barreiro e jamais servirá de penhora a negócios do clube".
O 25 de Abril matou a CUF...
A dois ou três quilómetros do Barreirense nasceu a CUF, em 1937, apoiada por uma das maiores empresas estatais do Estado Novo. O corporativismo podia ter produzido um campeão no Lavradio, mas o futuro risonho mudou com o 25 de Abril, e a CUF de Mário João, Conhé, Manuel Fernandes e Carlos Manuel desapareceu com a revolução de 1974. Foi Quimigal e agora Fabril, um clube que vive longe da glória dos tempos salazaristas e do terceiro lugar de 1965, obra do inovador 4-4-2 de Manuel Oliveira, o mesmo que fez história no Barreirense com o quarto lugar.
Com infraestruturas de fazer inveja a qualquer clube do país, tanto na altura do Estado Novo como agora, o atual Fabril tem um estádio com 22 mil lugares, dois campos relvados, dois sintéticos, um pavilhão e alguns campos de ténis distribuídos por um complexo de 15 hectares, propriedade da família Mello, que os cedeu até 2050.
"Mas perguntam, como é que a CUF que jogou na UEFA com o AC Milan do Maldini agora anda entre os distritais e os nacionais? Pois é essa a nossa realidade e temos de lidar com ela", desabafa António Fernandes, o presidente que se orgulha de ter as contas equilibradas. "Fechamos o exercício, salvo erro, com um prejuízo de dois mil euros", disse, antes de revelar que dispõe de um orçamento de 240 mil euros por ano, cem mil deles para a equipa sénior, que joga no Campeonato de Portugal.
As receitas atuais passam pela exploração de uma bomba de gasolina, uma oficina de pneus, um restaurante e um bar, além das parcerias com empresas e da quotização dos 1800 sócios. E são "manifestamente insuficientes" para o nível de competição. Mas, verbas à parte, o dirigente acredita na salvação: "Nós não deitamos a toalha ao chão. No domingo [hoje] vamos receber o Armacenenses e se não ganharmos a coisa complica..." Afinal a equipa está em último da série H.
No entanto, se o Fabril descer, o caminho é "voltar a subir". Aliás, este ioiô do sobe e desce dura há já algumas épocas e o presidente aponta o dedo ao modelo. "É um campeonato ruinoso para os clubes, cada jogo custa-nos mil euros, e temos como receita uns 300, logo um défice de 700 euros por jogo. E são quatro jogos por mês, vezes 11 meses... Estamos a morrer lentamente", avisa o líder do Fabril.
Orgulhoso do passado de primeiro clube-empresa, e primeiro clube a ter uma sala de imprensa e uma sauna, "onde Eusébio ia recuperar das lesões", o atual presidente prefere olhar para o presente de forma a construir o futuro. E esse pode até passar por uma fusão com o rival Barreirense. António Fernandes gostava que fosse possível um protocolo com a câmara municipal que permitisse ter instalações que servissem os clubes da cidade e pudessem receber estágios e jogos das seleções.
Mas é possível uma união entre os dois "gigantes" do Barreiro? "Uma união sim, uma fusão não parece possível. A união de duas famílias pode dar origem a uma terceira e ambos precisamos de um espaço, que possamos partilhar, no fundo para namorar, com a bênção do município e da AF Setúbal", responde António Fernandes, lembrando que o clube já passou por duas mudanças e isso não o matou.
Mas, na opinião dele, o Fabril-Barreirense não seria garantia de I Liga. "Porque o que faz que o clube possa lá chegar lá não é ter um só clube na cidade. É ter acionistas, que injetem capital naquilo que é a indústria do futebol. E isso só é possível pela via das SAD ou SDUQ", explica, revelando: "Recebi um e-mail de uma pessoa a dizer que quer reunir-se comigo para comprar o clube, mas nós não estamos em saldos. O clube é dos sócios e não estamos interessados em que eles deixem de ter voz."
Velhas glórias made in Barreiro
"Fui para a CUF com 18 anos. Eu era um miúdo e não era fácil um miúdo dessa idade jogar na 1.ª Divisão", recorda Manuel Fernandes, que viria a ser convocado pela primeira vez para um jogo com o Benfica, em outubro de 1969: "O Costa Pereira mandou-me entrar a uns 20 minutos do fim... quando o Benfica já vencia por 2-0, com dois golos do Eusébio. Para mim foi uma coisa extraordinária, estrear-me frente a figuras como Coluna, Simões, Jaime Graça, Torres e Eusébio. As pernas pesavam 200 quilos..."
As pernas foram ficando mais leves e na época a seguir o goleador começou a carburar. "No primeiro jogo em casa marquei logo três golos ao Leixões e as coisas começaram a compor-se. Depois do 25 de Abril acabei o contrato e fiquei livre para escolher para onde ir. E escolhi o Sporting", conta, sem esquecer que FC Porto e Belenenses "andavam atrás".
Nessa altura os jogadores tinham contrato de trabalho na CUF: "Eu trabalhava lá na serralharia das 08.00 às 11.00, almoçava às 11.30 no refeitório da CUF, que era extraordinário, e depois ia treinar às 15.00. Mas depois comecei a crescer como jogador e deixei de trabalhar para treinar e jogar." Até fazer um contrato "a sério", Manel tinha dois ordenados: "Como jogador recebia cinco contos de luvas [25 euros) e 800 escudos [4 euros] por mês. Como serralheiro recebia mil escudos [cinco euros]."
A antiga glória leonina ainda hoje é vista com um herói no Lavradio. Foi Manuel Fernandes que marcou o golo dos operários, hoje apelidados de ratos brancos pelos adversários, que garantiu a participação histórica na UEFA, após uma vitória sobre o FC Porto. E por isso custa-lhe ver o clube nesta "situação complicada", principalmente porque "o Barreiro tem muita gente que gosta de futebol e merecia ter um clube na I Liga". E isso talvez fosse mais fácil, diz, se os dois clubes da cidade se unissem.
Carlos Manuel concorda. O internacional português, que marcou o golo que apurou Portugal para o México"86, jogou pelos dois e não via mal algum numa fusão "para puderem ter sucesso no prazo devido". Ele começou no hóquei em patins da CUF e só mais tarde foi desafiado a ir treinar futebol. Fez a formação no clube do Lavradio e ainda júnior passou a jogar nos seniores: "Apanhei a fase de transformação com o 25 de Abril, quando o clube andou um pouco aos trambolhões, mas era um clube em que não faltava nada, as condições eram fantásticas. Eu recebia seis contos [30 euros] - tinha um emprego nos caminhos-de-ferro que rendia mais três contos [15 euros] - e foi com esse dinheiro que comprei o primeiro carro."
Depois a CUF desceu. "Eu, o Araújo e o Frederico saímos os três para o Barreirense. A época correu-nos bem, mas à equipa não e no ano a seguir fomos para o Benfica." Por isso não teve muito tempo para sentir na pele a "sã rivalidade", que depois do jogo "virava convívio". Mas lembra-se que "o Barreirense era visto como o clube para dar o salto". E na altura havia muitos jogadores a ir para o Benfica: "Eu e o Frederico fomos porque o Zé Augusto, que já tinha feito o mesmo caminho, nos indicou!"
In http://www.dn.pt/desporto/interior/a-luta-dos-gigantes-do-barreiro-para-nao-deixar-a-cidade-cair-aos-distritais-6255976.html
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