O Barreirense faz 100 anos e o i entrevistou uma figura do clube que chegou à selecção brasileira e até marcou um golo a Zoff no Mundial-78
Ronald Koeman (193 golos), Passarella (134), Hierro (110), Bauza (108) e
Breitner (103). Este é o top 5 oficial dos defesas mais goleadores de
sempre, só em jogos do campeonato nacional - neste ranking, o primeiro
português chama-se Humberto Coelho e ocupa a 26.a posição, com 68.
Segue-o de muito perto um tal Roberto Carlos (66), o primeiro
brasileiro.
Mas, lá está, é só campeonatos nacionais. Se juntássemos
todas as provas, o resultado seria outro. Para começar, Humberto subiria
a sua conta para 97, entre Benfica, Paris SG e Las Vegas Quicksilver. E
Roberto Carlos, por muito jeito que tenha para marcar livres, não seria
o primeiro brasileiro. Esse distinto lugar seria ocupado por Nelinho.
Quem?
Pronto, pronto, eu digo o nome completo: Manoel Rezende de Mattos
Cabral. Ainda não chegou lá? O Nelinho, que jogou meio ano no
Barreirense em 1970-71, antes de se tornar o Nelinho da selecção
brasileira nos Mundiais-74 e 78.
O Barreirense faz 100 anos.
Nesse século de vida, dezenas de figuras desfilaram pelo clube, agora na
1.a divisão distrital de Setúbal. O site oficial nomeia, por exemplo,
15 figuras indiscutíveis do seu passado, algumas ligadas ao Barreirense
apenas nas camadas jovens (como Arsénio, que fez carreira no Benfica) e
outras com passagem meritória na equipa principal (como José Augusto e
Bento). Há ainda o caso de Chalana: seis jogos em 1974-75 bastaram-lhe
para entrar no panteão dos imortais. Daí para o Benfica, Selecção AA,
Bordéus e por aí fora. Com Nelinho, idem. Seis jogos em 1970-71
são suficientes para estar no 15 ideal do site do Barreirense. Daí para o
Cruzeiro (uma Taça Libertadores e quatro estaduais mineiros), selecção
do Brasil, Atlético Mineiro (mais quatro estaduais de Minas Gerais) e um
golo histórico no Mundial-78. Pelo meio, garantem os historiadores do
futebol brasileiro, Nelinho marcou 210 golos em jogos oficiais, em
estaduais, Taça do Brasil, campeonato nacional e Libertadores. Duzentos e
dez. Só no Cruzeiro são 105. É o 13.o melhor marcador de sempre do
clube. E olhe lá que ele é foi lateral-direito. Lá, na Toca da Raposa, é
o rei dos golos de livre (42) e de penálti (38). Em Portugal, no
Barreirense, não teve sorte nenhuma. Seis jogos, zero golos.
O i
apanhou-o por telemóvel às nove da manhã em Belo Horizonte. A conversa
flui naturalmente. Ele não sabia que o Barreirense ia fazer 100 anos.
Tudo bem, nós por aqui também não conhecemos muito bem o Nelinho. Vamos
mudar isso? Mãos à obra.
Nelinho, fala de Portugal. Ligo-lhe para falar consigo a propósito da sua época no Barreirense.
Em 1970-71.
Isso mesmo. Como é que um miúdo de 20 anos atravessa o Atlântico para jogar futebol? Os tempos eram outros...
Tem
razão, sim, mas foi tudo uma sucessão de acontecimentos. Naquela altura
eu era júnior do América, a terceira força do futebol mineiro, depois
de Cruzeiro e do Atlético Mineiro. O meu treinador era o Otto Glória.
Chiiii, já entendi tudo.
Ééééé,
o cara era fera. Treinou Benfica, FC Porto, Sporting, Belenenses e até a
selecção portuguesa no Mundial-66. Ora em 1970 o Barreirense falou com
ele e pediu-lhe que sugerisse um nome para assumir o clube. O sô Otto
então apontou o seu adjunto, um tal Edsel Fernandes. O Barreirense
aceitou esse nome e o Edsel Fernandes acabou por ir treinar ao Barreiro.
Como bónus, levou-me com ele.
E como foram os seus tempos aqui?
Mais
ou menos. Joguei num outro campeonato, bem diferente do mineiro, porque
em 1970 ainda não havia o Brasileiro, como vocês o conhecem agora. Esse
só foi criado em 1971. Aí em Portugal joguei seis vezes no campeonato e
mais duas na Copa UEFA.
A sério?
Sim, foi a única
vez que o Barreirense jogou na Europa, via quinto lugar da época
anterior, e eu estava lá. Foi outro motivo de orgulho na minha ainda
curta carreira. Ganhámos 2-0 ao Dínamo Zagreb em casa, mas depois não
tivemos qualquer hipótese na Jugoslávia (1-6).
E no campeonato?
Nem fala... Só conseguimos ganhar à 14.a jornada, a primeira da segunda volta!
O quê?
Calma aí. Também não fomos assim tão mal, porque havíamos empatado seis vezes e perdido sete.
E o Edsel Fernandes?
Já
tinha ido embora faz tempo, substituído por um [Artur] Quaresma.
Lembro-me que o seu último jogo foi com o Benfica, lá no Barreiro.
Perdemos 2-0 mas tive um orgulho enorme em estar no mesmo campo que o
grande Eusébio. Pôxa, imagina só a minha adrenalina! Nem sei se nesse
dia ele marcou algum golo [não senhor, isso ficou a cargo de um defesa
goleador - Humberto Coelho, who else? - e Artur Jorge]. Antes desse
resultado, lembro-me de outro jogo histórico, quando fomos empatar 2-2
às Antas. O ambiente que vivi nessa tarde nem dá para contar. O estádio
cheio, cheio, e nós com uma calma sensacional. Estivemos a ganhar duas
vezes, mas eles marcavam sempre a seguir [Câmpora 2'', Abel 25'',
Câmpora 46'' e Pinto 49''].
Mas então o que se passou na 14.a jornada?
Ahhhhh,
essa é melhor você sentar-se. Ganhámos ao Sporting, então o líder do
campeonato, e em Alvalade. Foi 1-0, golo do Serafim. Mas aí eu já não
jogava.
Porquê?
Lesionei-me na virilha em
Outubro/Novembro e aquilo nunca mais sarou. Sentia dores incríveis. O
tempo passava, passava, passava e eu nada de treinar, nem de jogar. Que
dores! Os directores não acreditavam em mim, julgavam que eu estava a
fazer fita e que me queria ir embora. Lembro-me perfeitamente que só o
massagista é que acreditava em mim e dizia-me sempre que confiasse em
mim, que eu ia superar aquele momento.
E o nome dele?
Não
me lembro, mas recordo-me da figura. Era um senhor, gente boa prá
caramba, de setentas e muitos anos, Já morreu. Sei disso porque há já
muito tempo entrevistaram-me aí de Portugal sobre isso. Alguém que sabia
da minha amizade por ele.
Lembra-se de quem então?
Do
Bento [guarda-redes], aquele que jogou no Benfica e na selecção. Em
1970-71 ele já era famoso porque tinha uma agilidade inacreditável e
marcara um golo no campeonato [à Académica], de baliza a baliza. Havia
mais quem? O Mira, um jogador técnico-cerebral, os goleadores Serafim e
Câmpora, o capitão João Almeida, um cara com um nome bacana, Murraças.
E o Nelinho?
É, e eu.
E saiu quando do Barreiro?
Em
Fevereiro. Como eu nunca mais ficava bom e os dirigentes não
acreditavam em mim, pedi-lhes para voltar ao Brasil. Ainda por cima era
época de Carnaval e eu queria estar era no Rio. Eles libertaram-me mas
não totalmente, porque ficaram-me com o passe. Jovem e inconsciente como
era, nem liguei. Só quando cheguei ao Brasil é que percebi que não
podia jogar por mais nenhum clube. Estava agarrado ao Barreirense.
E agora?
A
minha sorte foi o Barreirense ter acabado mal o campeonato, acho que
foi antepenúltimo [na realidade foi 10.o entre 14, só com dois pontos de
avanço sobre o último, Varzim]. O problema foi que um dos clubes atrás
do Barreirense [entre V. Guimarães, Farense e Leixões] meteu um recurso
para evitar descer de divisão, alegando que eu estava mal inscrito,
porque a minha ficha no Barreirense dava-me como luso-brasileiro.
Acontece que eu sou luso-brasileiro.
Então?
Os meus
pais são de Portugal. Os meus avós também. De Ovar. Por isso, quando
esse clube meteu recurso, o Barreirense veio falar comigo para eu
assinar um papel em como era luso-brasileiro. Acontece que só tinha 20
anos e ainda não era maior. O meu pai é que tinha de mexer com essa
papelada e assinar por mim. Eu então propus um negócio ao Barreirense:
eles davam-me o passe e eu entregava-lhes a carta assinada pelo meu pai a
respeito da minha dupla nacionalidade. Assim foi. Fiquei livre para
jogar onde quisesse e o Barreirense livrou-se da descida [na época
seguinte, o campeonato nacional cresce de 14 para 16 equipas e dos
últimos cinco classificado, só o "lanterna", o Varzim, é que
efectivamente desce].
A partir daí foi só curtir?
Que
nada... Estive três meses na Venezuela, com companheiros do América,
mas aquela liga era fraca de mais, embora pagasse bem. Regressei ao
Brasil.
E tornou-se um ícone?
Obrigado.
Então você é o Nelinho do Mundial-78?
Sim, obrigado.
Não marcou dois golos na Argentina?
Foi muito bom. Um de livre, à Polónia. E outro à Itália, com o Zoff na baliza.
Não foi esse o golo que o celebrizou?
É verdade, um remate de longe.
Um remate de longe, descaído para a direita, com a parte de fora do pé e a bola a contornar o Zoff. Não foi uma trivela?
Quase,
quase. Foi um momento feliz. O Brasil ganhou 2-1 e ficámos em terceiro
lugar num Mundial em que merecíamos ter ganho. Afinal não perdemos
qualquer jogo dos sete.
Venceu a Argentina em casa, não foi?
Sim.
É
aquele Mundial em que a Argentina precisa de ganhar 4-0 ao Peru para
garantir a final e, ao mesmo tempo, eliminar o Brasil e acaba por fazer
6-0. Esquisito?
Não, não. Não acredito em corrupção. Nós
também jogámos com o Peru e ganhámos fácil, por 3-0, e podiam ter sido
seis. Na boa. O esquisito desse Mundial foi a ditadura militar que se
vivia na Argentina. A gente estava sempre no hotel mas o caminho para o
treino ou o jogo era dramático. As pessoas quase não se manifestavam,
com medo de tudo e mais alguma coisa. Sem falar na extrema segurança nas
ruas, com muitos soldados e armas.
Em 1978 já era o pé canhão. Porque não testou esse remate no Barreiro?
Era jovem, 20/21 anos. Os mais velhos não me deixavam. O Mira queria marcar sempre tudo [risos].
Mas
depois ficou célebre aquela reportagem da TV Globo em que o Nelinho
chuta a bola para fora do Mineirão, um dos maiores estádios do mundo.
Nessa
tarde o repórter dizia que entre o relvado e a bancada eram 36 metros.
Acredito, mas aquilo era fácil para mim. Atirei a bola, ela subiu,
passou a bancada e só saiu lá do outro lado. Foi outro momento especial.
Como jogar no Barreirense, viver em Portugal, ir à selecção, ganhar um
monte de títulos no Cruzeiro e no Atlético Mineiro.
Com um bocado de sorte e com esse pontapé, ainda se tornava jogador de futebol americano?
Não
brinca não. Uma vez o Cruzeiro fez uma digressão em Chicago e eles lá
sabiam da potência do meu remate. Então pediram-me para fazer uns testes
em meter aquela bola deles, que é também bem fácil de controlar,
naquele H gigante, né?
E o que se passou?
Estava
machucado e não pude fazer o teste. Mas se fizesse, era "golo"
[gargalhada sonora]. De certeza. Tão certo como eu ter atirado a bola
para fora do Mineirão
Acredito.
E agora, já está a ver quem é o Nelinho do Barreirense?
In ionline.pt
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